Café pelo mundo: Egito

Café pelo mundo Egito

Egito: o café na base da cultura e política de um país

A lenda em torno da origem do café enquanto bebida tem início no século XI na Etiópia quando, conta-se, as cabras comiam as frutas que pareciam cerejas bem vermelhas e, após, ficavam com mais energia.

Observando este fato, decidiu-se prepará-las, cozinhando em água quente e depois, bebendo.

Como o comércio na península arábica era bem intenso nesta época, não demorou muito para esta frutinha se espalhar, ainda mais porque o clima em toda a região era propenso ao seu plantio.

O Iêmen foi o país em que ela mais se adaptou. E, dizem, foi lá, durante o Império Otomano, por volta de 1500, que o café começou a ser preparado não mais cozinhando-se a fruta, mas assando os grãos no fogo, triturando-os e fervendo o pó.

Esta maneira de se preparar café é ainda a mesma receita conhecida para se fazer o chamado “Café Turco” e é esta forma de se fazer café que é a tradicional no Egito, o país que conheceremos neste texto. Vamos nessa?

Café turco no Egito

Como chegou?

Mapa do Egito

Os otomanos conquistaram o Egito no início de 1500 e, assim, a forma de preparar o adorado cafezinho, como muitos outros hábitos turcos, começaram a fazer parte da cultura e do dia a dia das famílias egípcias.

Além do Império Otomano e dos costumes turcos, os místicos sufis do Iêmen também influenciaram  a cultura do café no Egito. Para eles, o café era utilizado em preces, como uma forma de se conectar com Deus, e para desintoxicação. Um exemplo de sua influência é a quantidade de casas de café na cidade do Cairo que surgiram em torno da universidade islâmica de Azhar.

Mulher servindo café no Cairo 1857
Servindo café, nos quarteirões Otomanos do Cairo (1857)

Não precisou de muito tempo para o café adquirir um papel social e cultural. Já no final do século XVII, Cairo tinha 643 “Bayt Gahwa” (casas de café), locais que se tornaram pontos de trocas culturais e de encontros entre os homens.

Água açucarada

A forma tradicional e utilizada até os dias de hoje para se pedir um café, fala sobre a quantidade de açúcar que você prefere, já que água açucarada é utilizada na sua preparação. O preparo mais popular é o “Mazbootah”, que significa “correto” e seria com uma proporção média de açúcar; “Ziadah” com açúcar adicional; e “Areehah” com pouco açúcar, ou seja, menos que na forma considerada correta, a “Mazbootah”.

Café com especiarias

Existe ainda a quarta opção “Saddah”, que não leva açúcar nenhum. Esta forma de preparo é utilizada em situações tristes, como funerais.

No Egito, funerais não são eventos celebrativos e todo o ambiente deve trazer uma atmosfera de seriedade, incluindo o café. Nestes eventos, inclusive, não se utiliza nenhuma especiaria na preparação do café, algo comum no dia a dia da cultura egípcia, como canela, cardamomo, cravo, noz moscada, entre outras.

As tribos Beja

Existem tribos conhecidas como Bisharin ou Beja (e também pelos nomes de Hedared, Hadendoa, Amarar, Beni-Amer, Hallegnda e Hamran) que tem a cultura do café como parte da sociedade e política de sua vida.

Elas vivem nas montanhas do Mar Vermelho na região sudeste do Egito e nordeste do Sudão.

Mapa tribos Beja Egito

Neste Blog uma pesquisa feita sobre a vida destas tribos pode ser lida, em inglês. Aqui, contaremos um pouco dos costumes relacionados ao café registrados pelas pesquisadoras.

Os Beja tem uma longa história que se estende desde os tempos faraônicos no Alto Egito e, embora continuamente ligados ao comércio e a política no Vale do Nilo, há muitos milhares de anos, eles mantiveram seu próprio idioma: o a-bedawei.

A preparação do café é algo cerimonial, uma arte para os Beja, como em muitas partes do Oriente Médio e África do Norte. Em muitas regiões, a tarefa é realizada pela “cabeça do lar”, como na imagem abaixo, na qual o anfitrião – vestido com roupas brancas e colete azul tradicionais dos homens de Beja – monta uma pequena fogueira onde será preparado o café (sua sela de camelo aparece atrás dele).

Homem da Tribo Beja Egito

A cerimônia consiste, primeiro, em torrar os grãos de café em uma pequena fogueira, em nada mais do que uma uma lata de estanho remodelada que foi cortada para um tamanho apropriado, na qual uma alça de arame foi fixada.

Depois de torrados, os grãos são esmagados à mão em um pilão (que pode ser visto à esquerda na imagem acima) e podem ser adicionados grãos de pimenta e algumas outras especiarias esmagáveis.

Os potes usados ​​para preparar e servir o café são de argila vermelha (como da foto abaixo), design encontrado também em todo o Sudão oriental, às vezes feito de lata leve, utilizado por cafés e restaurantes. Neste recipiente de argila vão os grãos de café moídos, juntamente com as especiarias, que são colocados lentamente, ao lado do fogo, em uma peneira feita de gramas secas.

Potes usados para preparar café Beja

Depois de ferver, o conteúdo é vertido em xícaras redondas e muito pequenas ao mesmo tempo em que o anfitrião faz movimentos específicos de mão e braço para melhorar o aroma, o som e a espuma. Esta parte, de derramar o café nas xícaras, pede grande habilidade pois é a que confere justamente o som e o aroma para o prazer dos convidados. As xícaras com o café são passadas em uma bandeja, enquanto o anfitrião e os convidados conversam e trocam notícias e pode-se ouvir “Bismillah” (em nome de Allah) sendo exclamado por cada participante, antes de se pegar a xícara de café ou “qahwah”, como é conhecido.

Mas este café não é bebido até que ele tenha sido ruidosamente mexido em sua xícara para que seu som e aroma realmente se espalhem: o que mais importa no ritual.

A cerimônia do café Beja é parte chave e muito agradável de começar todas as atividades formais do acampamento, na pausa do trabalho ou para se despedir de convidados, estes, sempre prometendo voltar em breve.

Tribo Beja Egito preparando brasa
Preparando brasas para o café

As casas de café no Egito

As casas de café continuam a ser uma instituição fundamental da sociedade, da vida social e até da política no Egito – para não mencionar todo o Mediterrâneo. Em todas as cidades do Egito, você ainda tem a antiga tradição de casas de café para homens. Até hoje, as casas de café são muito frequentadas e lá, é comum ver os homens jogando gamão ou xadrez, fumando um “shisha”, conversando com amigos e, claro, tomando um cafezinho.

No Cairo, as casas de café e seu uso tiveram tentativas de banimento por parte das autoridades religiosas. Os Sheiks discutiam se os efeitos do café eram semelhantes aos do álcool e que as cafeterias tinham algo parecido com as “casas de vinho”, proibidas pelo Islã.

As casas de café eram novos espaços onde os homens se reuniam diariamente e, como se tornaram um foco para a vida intelectual, podiam ser vistas como rivais implícitas das mesquitas, sendo substituídas como local de encontro. No entanto, todas as tentativas de proibição do café falharam, mesmo que a pena de morte tenha sido usada durante o reinado de Murad IV (1623-40). Os religiosos acabaram chegando a um consenso de que o café era, a princípio, permitido.

A vida cultural, econômica e política e as casas de café

No Egito, as raízes das casas de café remontam ao século XVI, mas uma grande mudança ocorreu na virada dos séculos XIX e XX. O pesquisador Alon Tom conta aqui, em inglês, a importância dos cafés para as mudanças políticas e culturais.

Naqueles anos, os europeus entraram na vida política e econômica do Egito, enquanto as elites egípcias adotaram ideias e costumes da Europa. Investimentos feitos pelos governantes na cidade do Cairo, fizeram com que muitos imigrantes europeus fossem também atraídos e se mudassem para lá. Com isso, centenas de casas de café de estilo europeu surgiram nos novos bairros, juntando-se aos cafés egípcios-otomanos que já existiam.

Enquanto os cafés egípcios serviam chá e café, os europeus também serviam álcool, doces e sorvetes. Nas casas egípcias costumava-se fazer música, ouvir contadores de histórias, leituras de poesias e assistir marionetes de sombras. Nas europeias, existiam bandas de música formadas também por mulheres e homens e mulheres dançavam juntos. Algumas das mais famosas cantoras árabes começaram suas carreiras nas casas de café, como a cantora, compositora e atriz egípcia Oum Kalthoum. Para escutar uma música dela, acesse aqui.

cantora egípcia Oum Kalthoum
Oum Kalthoum

Os novos cafés atendiam tanto os imigrantes europeus quanto os egípcios atraídos pela cultura e estilo europeu. Naquela época, a “cultura europeia” veio a ser identificada com a alta sociedade dos poderosos, ao mesmo tempo que as tradicionais casas de café egípcio-otomano eram cada vez mais percebidas como passagens antiquadas das classes mais baixas. Elas eram chamadas de “locais” ou “populares”, o que implica sua autenticidade egípcia. Assim, no início do século XX, havia uma hierarquia clara das casas de café, estas reforçando as identidades de classe.

As casas de café eram também onde se falava sobre a política e as notícias circulavam. Era muito comum que jornalistas escrevessem suas matérias sentados nas casas de café. Justamente por isso, as autoridades tinham um claro interesse em acompanhar o que acontecia nos cafés, a fim de avaliar a “opinião pública”, um conceito relativamente novo na época, para conhecer e manter apaziguados os movimentos políticos que os podiam ameaçar. Há diversos registros de agentes secretos dos serviços de inteligencia que operavam no regime, que reinava sob a proteção britânica na época, relatando o que acontecia nos cafés.

Casa de café no Cairo sec XX
Casa de café no Cairo, no início do século XX

A revolução egípcia de 1919 na qual os egípcios exigiram o fim da ocupação britânica e a concessão da independência foi fortemente debatida e organizada nos cafés.

Os estudantes distribuíam boletins para os vários partidos nacionalistas, comitês de demonstração e grevistas, ou os publicavam em portas de cafés. Todos os dias às 6 h da manhã, os boletins, que chamavam de “correio“, chegavam; eles eram lidos em voz alta, e às vezes os estudantes subiam nas mesas para gritar slogans ou discursar. As casa de café do Cairo incorporaram a rápida mudança social no Egito na segunda metade do século XIX e no início do século XX, fazendo parte de uma nova realidade social.

Café Riche

Café Riche no Cairo

O Café Riche, inaugurado em 1908 na 29ª Rua Talaat Harb, é um dos monumentos mais famosos do centro do Cairo.

Em diversas ocasiões da história do Egito, um lugar de encontro para intelectuais e revolucionários, o café testemunhou muitos eventos historicamente significativos ao longo do século XX, entre eles, a revolução de 1919, onde, dizem, membros da resistência se encontravam no porão para organizar suas atividades e imprimir panfletos.

Oum Kalthoum, apresentada no capítulo acima, cantou no teatro do café criado pelo seu terceiro dono, o grego Michael Nicoapolits. Em 4 de novembro de 1942, Nicoapolits vendeu o café para George Basile Avayianos, que concentrou seus esforços em adicionar um restaurante ao café. Em 1962, Avayianos deu o café a Abdel Malak Mikhail Salib, que se tornou o primeiro nativo egípcio a possuir o café. Essa mudança de propriedade também marcou uma mudança no país, já que os egípcios estavam começando a recuperar a identidade econômica do país dos proeminentes estrangeiros, que anteriormente controlavam muitos negócios bem-sucedidos.

O nobel de literatura de 1988, Naguib Mahfouz era um grande frequentador do café e, em diversos de seus romances ele é mencionado. Conta-se que o café era fechado às sextas-feiras para que Mahfouz pudesse realizar reuniões.

O café Riche se manteve fechado por quase uma década, em 1990, por conta de uma ação judicial contra o café feita pelo governo, devido à uma passagem pública que ele ocupava. O terremoto de 1992 fez com que seu prédio precisasse ser reconstruído e, com chegada da era digital, dos shoppings e outros tipos de lanchonetes com internet fizeram com que ele não fosse mais o ponto de encontro das novas gerações. Contudo, durante a revolução de 2011, o café serviu de refúgio para muitos que protestavam na cidade. Este é um local que certamente vale visitar quando você for ao Egito.

Você pode ver o Café Riche no Facebook e aqui uma reportagem da TV Al Jazeera sobre o Café Riche, em inglês.

Machismo também na cultura do café

Machismo e café no egito

No Egito, quase todos os homens possuem o seu “ahwa”, sua casa de café tradicional, que sempre frequentam.

O mesmo não acontece com as mulheres. Muitas, não são autorizadas a sair de casa e, as que saem, só o fazem acompanhadas de seus pais, namorados ou maridos. Durante o Ramadan é possível ver mulheres frequentando as casas de café, assim mesmo, apenas estão seguras se acompanhadas de homens. Em pesquisa realizada pelas Nações Unidas em abril de 2013, 99% das mulheres egípcias disseram terem sido vítimas violência sexual. 99%!

Feminismo Egito

Existem alguns cafés no Cairo que são mistos, conhecidos como “Borsa”, mas que não são “bem vistos” por grande parcela da população e começaram, também, a surgir cafés como o da imagem abaixo, onde existem espaços segregados para “famílias”, “mulheres solteiras” e “homens solteiros”.

Casas de café mulheres Egito

É um abismo gigante a se transpor para que mulheres possam ser vistas como seres humanos e tenham autonomia e segurança para beber um café tranquilamente nas ruas do Cairo.

Para conhecer mais sobre a cultura do café no Egito, assista esse vídeo em inglês.

E você leitor? O que tem achado de nossa série? Comente!

Fontes:

Lavazza

BBC

DianaBuja

Haaretz

AbissadaCooks

The Guardian

Egyptian Streets

Leia também:

Café pelo Mundo – Itália: café como tradição e excelência

Café pelo Mundo – Turquia: o futuro em uma xícara de café

Café pelo Mundo – Áustria: os cafés que fizeram história

Café pelo Mundo – Inglaterra: o impacto do café na rotina e na política

Café pelo Mundo – Alemanha: berço de música a coadores de café

Café pelo Mundo – Japão: o berço dos equipamentos para preparar cafés especiais

Carol Lemos – jornalista, mudou-se de São Paulo para Alto Paraíso, onde encontra inspiração para escrever e cuidar dos pequenos Uirá Alecrim e Dhyan Eté. Carol escreve semanalmente para o blog do Grão Gourmet. E-mail: carolinalcoimbra@gmail.com.

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2 thoughts on “Café pelo mundo: Egito

    • Renata Kurusu Gancev says:

      Muito obrigada pelo comentário Gabriel, fico feliz que esteja gostando 😉 Continue acompanhando! Um abraço, Renata

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