A escritora, a Olivetti e um pires vazio.
Por mais que as cortinas finas sobre as janelas abertas bruxuleassem devagar ao sabor da brisa da alta madrugada, a máquina de escrever não parava um segundo. A dona das mãos maduras sobre o teclado rígido, mas ergonomicamente adequado, não se deixava encantar por nenhum dos detalhes sensoriais ao redor que possivelmente poderiam tirar a atenção de outro autor menos inspirado. Cada tecla, a seu tempo, levava sua alavanca correspondente a um impacto certeiro contra a folha branca, gerando o ruído característico ao mesmo tempo em que, letra por letra, marcava ideias em formas de palavras para a eternidade.
Sua escrivaninha preta de madeira, posicionada exatamente diante da janela, nada tinha sobre si além da própria Olivetti, dos braços da escritora quase repousados sobre o equipamento e de um pequeno pires branco. O recipiente de louça, marcado por ranhuras formadas pelos prolongados contatos com xícaras quentes, estava ao lado direito da autora e da velha máquina. O objeto destacava-se na sobriedade das outras cores e no minimalismo do quarto, mas, principalmente, pela ausência do que deveria abrigar: nenhuma xícara compunha a bucólica paisagem.
Os olhos da mulher não saíam da altura do papel, e suas mãos apenas interrompiam o fluxo dos impactos nas teclas para reposicionar a prensa cilíndrica de modo que as ideias reiniciassem à margem esquerda da folha. Aos poucos, os caracteres eram posicionados um ao lado do outro, em sequências harmônicas que constituíam palavras, e estas, ideias. Logo as folhas eram totalmente preenchidas, retiradas e empilhadas ao lado da máquina, dividindo atenção no espaço e no tempo com o pires vazio.
Quando o olhar atento e meticuloso da escritora vacilou pela primeira vez, o alvorecer estava próximo. As poucas luzes que ensaiavam o nascer do sol ainda pintavam o horizonte de azul-avermelhado. A brisa da madrugada cessou, acompanhando o movimento das mãos dela que, pela última vez, retiraram uma página completa para adormecer na pilha ao lado da Olivetti. O sol nasceu, trazendo com ele o reluzir do novo dia e o aroma que vinha da cozinha.
O companheiro da escritora, então, entra no quarto, deposita a xícara de café no pires antes vazio e beija seu rosto. A mulher retribui o gesto de carinho com um sorriso contido, antes que ele saísse novamente. Em seguida, sente o aroma do café coado e bebe contemplando a paisagem que se desenha pela janela.
Há escritores que usam cafeína para se manter acordados. Mas não ela.
Ela bebia café para sonhar.
…
Mário Bentes – Jornalista, escritor e apaixonado por café
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Intenso, profundo.