Café no Centro
Você mal começou a ler estas linhas e já foi provavelmente enganado. Mas, afinal o que fazer, sendo a mentira a base da nossa sociedade desde que Ulisses enganou os troianos com o Cavalo e Isolda, aquela que nos ensinou a amar, enrolou o próprio deus com a história sobre quem tinha estado entre suas coxas.
Pois é, o Café no Centro não se refere aquele cafezinho tomado no Centro da Cidade, em pé, num balcão, como faziam os brasileiros até umas décadas atrás. Se foi isto que lhe interessou no texto, pode parar aqui. Trato do Centro como, aquilo em relação ao qual todo o resto deve se ajustar.
Trago aqui uma proposta de organizar sua vida em torno do café tornando-a talvez mais feliz com isso. Temos um exemplo desta experiência levada ao limite aqui pertinho, com os portenhos, capazes mesmo de interromper o fluxo do tempo quando sentados no Tortoni. Esta proeza suprema de controle do tempo pelo café é infelizmente inalcançável no Brasil. Ainda assim é possível melhorar nossa vida substituindo a lógica do trabalho e do engarrafamento aos quais o nosso tempo está submetido, passando a controlá-lo pela eleição do cafezinho como o novo eixo ao qual se ligará sincronicamente relógio.
Recorro logo aos mestres neste assunto, os Beneditinos. São Bento no século V estruturou o Ofício Divino em oito períodos, organizando o tempo e a própria vida, afastando o demônio do meio-dia, através orações e salmos consolidados no Livro das Horas.
Eles tinham a Laudes, ao raiar do dia, A Prima, antes de iniciar o trabalho e a Terça às 9 horas. A Sexta marcava o meio dia e a Noa o meio da tarde. As Vésperas anunciavam o final do dia de trabalho e as Completas deviam ser observadas antes de se deitar. Finalmente, em alguns casos, ainda existiam as Matinas, no meio da noite.
A semelhança com o tempo determinado pelo cafezinho no Brasil é notável, a ponto de não poder ser acidental apenas. Pois então basta assumir e praticar o Café no Centro, neste mundo onde Deus já não conta.
O dia já nasce marcado pelo café da manhã, nossa Laudes, começando lentamente, mas depois acelerando-se com a apressada saída pela porta afora, já turbinados pela nossa rubiácea.
No trabalho, depois de um trajeto usualmente penoso, temos o café que corresponde à Prima, servido por um copeiro se você é chefão, ou num ambiente comunitário onde haverá uma inevitável máquina, se não é. Ah, o copeiro que serviu o chefão já tomou o dele antes, quentinho e fresco!
Temos também o equivalente à Terça, no meio da manhã, e à Sexta, que no nosso mundo atrasa um pouco e acontece lá pelas duas horas, depois do almoço. Os cafés associados à Noa e às Vésperas sucedem-se nos escritórios como nos mosteiros, sendo que o último definitivamente de máquina, mesmo para o chefão, pois o demônio das horas-extras afasta a possibilidade do copeiro estar lá no fim do dia.
As matinas, estas ficam para os boêmios que vira e mexe precisam um café na madrugada para se livrar da ressaca.
Os Monges e os Leigos que seguiam a Liturgia das Horas eram apoiados por um breviário que os guiava na jornada cotidiana, trazendo o conforto de que o dia que virá após o outro seria uma mera variação sobre o mesmo tema do anterior. É o que nos falta neste mundo cheio de mudanças, sustos, incertezas e velocidade, pois afinal, como disse alguém, o futuro tem um coração antigo.
Fica a proposta de que seja em torno do cafezinho que nos reorganizemos, o líquido negro afastando o temor de tempos mais negros à frente pelo condão da continuidade. Os que vivem do café, uma grande cadeia produtiva que vai da terra à internet, ficam com a responsabilidade de preparar os novos breviários, sugerindo misturas apropriadas para cada momento, ou para cada tipo de necessidade, adaptando-se ao “mood” de cada um. Quando paramos para tomar um café podemos criar um intervalo dedicado à mentira – fantasia e criação – trazendo sabor a este mundo descartável e insosso de transiências e superficialidades.
Paro por aqui, pois cansei a mim mesmo e provavelmente o leitor. Preciso mesmo é de um cafezinho. Mesmo fora de hora.
Luiz Marinho – Engenheiro de 64 anos que toma café diariamente
Co-autor: Sócrates Times de Carvalho Neto – Engenheiro de processo de primeira e ator bissexto.
Se você também tem uma história bacana sobre café e gostaria de vê-la publicada, mande seu conto para contato@graogourmet.com.
Os contos selecionados serão presenteados com um brinde especial.
Mais um excelente conto! Parabens! Parece que os que amam o café, tem uma habilidade natural para escrever! Viva o café nosso de cada dia!
E acho que esse último inspirou algumas pessoas pois essa semana recebemos mais alguns ótimos contos.
Genial!
Seria o trecho “Quando paramos para tomar um café podemos criar um intervalo dedicado à mentira dedicado à mentira – fantasia e criação – trazendo sabor a este mundo descartável e insosso de transiências e superficialidades.” uma confissão velada?
Abraço
Pedro, segue a resposta do autor para sua pergunta.
Um abraço.
Ah! A mentira.. Poderíamos até mudar o infame lema da nossa bandeira, “ordem e progresso” por “mentira é progresso.”.
Afinal o mundo das verdades é mesmo perigoso,se levarmos em conta os instrumentos que a produzem.Variam da tortura à propaganda de massa, passando pela velha e boa (?) fé, ou pelas construções ideológicas hegemônicas.
Galileu estava mentindo – para os seus – ao afirmar que a terra girava em torno do Sol. Bruneleschi inventou uma bela mentira, a perspectiva, dando profundidade (falsa) a superfície plana dos quadros.
Shakespeare resolveu isso em A Tempestade:
Our revels now are ended. These our actors,
As I foretold you, were all spirits, and
Are melted into air, into thin air;
And, like the baseless fabric of this vision,
The cloud-capped towers, the gorgeous palaces,
The solemn temples, the great globe itself,
Yea, all which it inherit, shall dissolve;
And, like this insubstantial pageant faded,
Leave not a rack behind. We are such stuff
As dreams are made on, and our little life
Is rounded with a sleep. (IV.i.148–158)
Portanto longe de ser uma confissão – afinal só se confessa a verdade – , é mais a expressão de um desejo, de que sejamos livres para construir nossas mentiras, mesmo que elas evaporem em um dado instante. Construiremos outras.